Argumento: Frank Miller
Desenho: Dave Gibbons
Cor: Robin Smith
Editora: Dark Horse Comics
I know not what course others may take but - as for me - give me liberty or give me death.
Patrick Henry
Diz-se que a História tem tendência a repetir-se e prova disso é esta série de culto.
Criada em 1991,
Give me liberty foi uma obra visionária, reflexo dos anos anteriores que moldaram o mundo e que nos dias que correm tem uma actualidade impressionante e assustadora.
Em 1995, na altura um futuro não muito distante e de certa forma (im)provável, a América é uma poderosa nação, detestada pelo mundo inteiro. Expulsa da ONU por ter invadido territórios como a América do Sul, Israel, Cuba, Paquistão ou Indochina com a justificação de serem
no man’s land, territórios abandonados e/ou conflituosos, a criminalidade aumentou drasticamente e movimentos separatistas e extremistas desenvolvem-se às centenas lutando contra a administração central pelas mais disparatadas razões.
Uma parte da população vive em mini cidades, complexos vistos pela população exterior como prisões/asilos onde os criminosos sem emenda são enviados para cumprir as suas penas ou serem tratados. A verdade é que estes complexos são verdadeiras cidades em miniatura com todas as infra-estruturas necessárias à vida normal (escolas, hospitais, etc.) onde famílias inteiras nascem, vivem e morrem em espaços minúsculos, sem as mínimas condições e sem ver alguma vez a luz do dia. É neste tipo de instituição que a protagonista desta série,
Martha Washington, nasce em 1995, um ano antes de
Erwin Rexall ser eleito presidente. Desde muito nova habituada a este gueto,
Martha é um génio com computadores, uma lutadora nata que sabe que a única forma de escapar a esta prisão é ser abandonada à sua sorte na rua. Esta é a solução encontrada para muitos instáveis mentais não sobrecarregarem em demasia o governo, resultado dos inúmeros cortes orçamentais que o
Presidente Rexall decretou.
Erwin Rexall, um sonho de presidente que faria qualquer bom conservador
redneck orgulhoso (e um produto eleitoral com muitas afinidades ao filósofo grego que nos governa), eleito pela primeira em 1996, trata de aumentar ainda mais a pressão interior e exterior dos EUA.
Levando ao extremo os ideais conservadores,
Rexall faz inúmeras alterações à constituição podendo-se recandidatar sem limite, impondo um regime de ferro à população, alia-se à
Polícia da Saúde, uma versão distorcida da Cruz Vermelha chefiada pelo louco
Cirurgião Chefe e autorizando a morte indiscriminada de milhares de sem-abrigo que há muito infestam as cidades, resultado das expulsões das instituições.
Em pleno colapso da economia mundial, em guerra com o Irão graças a um estúpido erro que fez arder inúmeras jazidas de petróleo e com a população apache a criar problemas numa refinaria, em 2009 o impensável acontece. Uma bomba incendiária mata todos os membros do governo de
Rexall, deixando este em coma profundo. Como resultado deste atentado reivindicado por mais de 60 organizações, o então ministro da agricultura,
Howard Nissen, assume o lugar de presidente. Democrata e ambientalista convicto,
Nissen dá uma grande volta aos desígnios do país, reconhecendo a independência da
Nação Apache, assinando um armistício com a Rússia e mobilizando todas as tropas para a Amazónia, local devastado pelas empresas de hambúrgueres que se tornaram imensamente poderosas e que defendem a todo o custo as pastagens da principal fonte de alimento americana.
Martha Washington (nome da mulher do primeiro presidente dos EUA), a personagem principal desta série de culto, é uma simples rapariga nascida em 1995 no seio de uma pobre família negra a viver o complexo Cabrini Green.
Conseguindo escapar do complexo com apenas 14 anos,
Martha é a nossa companhia nos eventos históricos que atravessam os EUA.
Martha esteve quase sempre na linha da frente destes eventos por se ter alistado à
PAX, uma suposta força de paz (uma espécie de SHIELD) americana deturpada e ao serviço do próximo golpe sujo do governo e que lavou a cara com a intervenção de
Nissen. Quem se alistasse na
PAX veria o seu registo criminal limpo.
Martha aproveitando esta oportunidade, vai para a frente de combate na Amazónia onde é ferida pelo megalómano
Coronel Moretti. Esta personagem manipuladora, herdeiro de família rica, chantageia Martha e usa-a nos seus esquemas para subir no poder na
PAX e no governo.
Claro que nem tudo são rosas com a administração
Nissen. A guerra na Amazónia mostrou-se desastrosa com pesadas baixas de ambos os lados. Alvo de vários atentados, o seu governo começa a ser minado por dentro por nada mais, nada menos que
Moretti que pretende instaurar estado marcial e que irá levar o país a uma nova guerra civil.
Lutando contra (ou ao lado) de todas as personagens de relevo da série,
Martha demonstra a sua tenacidade e bravura, escolhendo sempre o menor de vários males de forma a poder salvar o país de inúmeras ameaças.
Esta obra apesar das suas virtudes, também tem os seus defeitos. Resumidamente pode-se dizer que 4 números são pouco espaço para tanta informação. O leitor é transportado a uma velocidade fenomenal pelos acontecimentos que na maioria das vezes falham em construir uma base credível para a transição entre os eventos em que Martha Washington se vê envolvida e as explicações gerais dadas ao leitor sobre vários acontecimentos que afectam a heroína.
O desenho de
Dave Gibbons é simplesmente impecável. Não há muito mais a dizer além de que é superior à rigidez de se vê em
Watchmen e que muito deve também às cores de
Robin Smith.
Frank Miller excede-se. Descrito por alguns como
“um festival de cenas de explosões numa guerra pela supremacia de uma empresa de hambúrgueres (com alguma politica pelo meio)”, não me canso de repetir que
Give me liberty é uma obra visionária. Sim, temos as situações impossíveis de uma personagem que mais parece ser invulnerável. Sim, temos as habituais explosões, combates, acção e inúmeras situações limite. Sim, temos uma heroína que salva o dia inúmeras vezes. Temos também as típicas ridículas organizações extremistas como, por exemplo, a Nação Ariana Gay que já vimos variantes em obras como
Ronin ou
Dark Knight Returns.
E no entanto esta obra é tudo isso e muito mais superando-se a si mesma.
Num mercado infestado de homens musculados e beldades esculturais semi-despidas todos os dias ao soco e pontapé a tentar provar algo (?), é preciso tirar o chapéu à
Dark Horse e à dupla de criadores da obra por terem dado um verdadeiro salto de fé. Ter como heroína uma maria rapaz negra armada em Rambo foi um risco tremendo para todos os envolvidos… E ainda assim
Miller superou.
Como já referi atrás, toda esta mini série encontra-se assustadoramente actual. Quase todos os acontecimentos nele encontram um paralelismo com a actual situação no mundo. É difícil pensar que esta obra foi produzida há mais de 15 anos numa altura em que o mundo se parece tanto como hoje. Poder-se-ia dizer que
Give me liberty é o reflexo dos acontecimentos passados antes da sua produção e no entanto, o leitor facilmente se esquece destes pormenores e trata de associar eventos actuais aos da obra.
A Guerra na Amazónia é uma clara alusão à desastrosa Guerra do Golfo (ou ainda a Guerra do Vietnam) mas hoje, mais do que nunca, pode ser feita um paralelismo com a actual Guerra do Iraque e futuramente a Guerra do Afeganistão já que os EUA estão a retirar do Iraque para se concentrarem duramente neste país que lhes está a ficar fora de controlo muito rapidamente;
O colapso da economia e de Wall Street que levaram aos caos social é uma cópia exagerada (?) do que actualmente se passa no mundo;
A excessiva poluição produz um pesadelo ambiental que nos preocupa actualmente e que podemos ver as consequências nesta obra;
Também é incrível ver a semelhança que pode ser feita entre
Rexall e
Bush (ou até em menor grau o dito filósofo) e respectivos sucessores,
Nissel e
Obama que muda(ra)m a imagem da América. Curiosamente,
Nissen toma posse em 2009, o mesmo ano em que
Obama também foi oficialmente declarado presidente dos EUA.
Com estas semelhanças e muitas outras que vos desafio a descobrir, não há margem para dúvida em afirmar que
Frank Miller foi um visionário e criou uma obra obrigatória que merecia um muito maior destaque e uma profunda análise. Esta obra merece, mais do que nunca, uma leitura muito séria. Que nos sirva para pensar, nem que seja por um bocadinho, no estado actual do mundo e no que uma simples pessoa (cada um de nós) pode dar de si para criar para contribuir para um mundo melhor tal como
Martha fez.
A lista completa de estórias é a seguinte:
-Give Me Liberty (mini série de 4 números)
-Martha Washington Goes to War (mini série de 5 números)
-Happy Birthday, Martha Washington (one-shot)
-Martha Washington Stranded in Space (one-shot)
-Martha Washington Saves the World (mini série de 3 números)
-Martha Washington Dies (one-shot)
Encontra-se em preparação um Omnibus de mais de 600 páginas com tudo o que esteja referente à personagem de
Martha Washington que estava previsto sair em 2008. Actualmente no site da Amazon fala em Julho deste ano. Resta-nos esperar.
NOTA: Quem tiver a 3ª e 5ª séries para venda, que me contacte por favor já que são as únicas estórias que me faltam para acabar a colecção.