06 February 2008

Entrevistando David Soares

Esta entrevista realizada em Janeiro de 2008 esteve durante muito tempo disponível no portal Centralcomics. Aquando da sua remodelação, entre vários textos, ficou perdida esta entrevista ao escritor e desenhador David Soares.
Na altura, durante o período que durou a disponibilização da entrevista, O David anunciou um novo romance (hoje conhecido como Lisboa Triunfante) e que está a escrever duas novas BDs, uma delas desenhada por ele e a outra já anunciada com o título de Mucha editada pela Kingpin Books. O anúncio foi feito depois da entrevista estar concluída e antes de ter sido disponibilizada e por esta razão, estas obras não foram referidas na presente entrevista.

Com o recente lançamento de "A Conspiração dos Antepassados", que em menos de um mês já esgotou a 1ª edição, David Soares estreia-se na escrita de romances. Este lançamento e o recente anúncio de que está a preparar duas novas bandas desenhadas da sua autoria, uma das quais desenhada por ele, foi motivo mais que suficiente para uma pequena grande entrevista em exclusivo para a Centralcomics.


Diogo Campos: Para autor nacional, pode-se dizer que é um autor “completo”. Fazes banda desenhada (tanto argumento como desenho), escreves nos mais variados formatos (contos para diversas antologias, romances) e já fizeste um áudio book acerca de Lisboa. O que achas que mais te influenciou para seres tão polivalente?
David Soares:
É uma boa pergunta. Acho que aquilo que mais me influencia a experimentar diferentes formas de expressão é perceber até que ponto podem chegar as possibilidades da linguagem. Todos os trabalhos que já realizei têm em comum o facto de serem narrações, histórias; mesmo que sejam contadas de maneiras distintas, a matéria-prima é sempre a mesma: a linguagem, as palavras e os ritmos. Eu gosto de autores interdisciplinares que provam ser hábeis em cruzar diferentes artes ou áreas de interesse em criações credíveis. Certamente que isso também me influencia. É, por outro lado, um modo saudável de me manter em forma, evitando a repetição e percebendo como os assuntos podem ser observados de ângulos inéditos: aquilo que faço em banda desenhada vaza para a prosa e vice-versa. Ler aquilo que escrevo em voz alta, uma prática que trouxe da minha experiência em spoken-word, é um guia precioso para gerar essa tal diversidade, para garantir o dinamismo da escrita. Se não gosto da sonoridade das frases, mudo-as. Aprendi a confiar no meu ouvido.

Acredito que o artista não pode cair na inércia, e não existe nada de errado em ginasticar o talento em âmbitos variados. Os indivíduos criativos, que trabalham numa actividade artística, normalmente mantêm uma rede de interesses diversificados. Em Lisboa, nas décadas de vinte a setenta, mesmo sob o jugo censório da polícia política do Estado Novo, os artistas reuniam-se em tertúlias para trocar experiências e formar sinergias. Hoje não se vê isso com tanta frequência. Há a tertúlia mensal organizada pelo Geraldes Lino, por exemplo, mas acaba por ser um encontro onde apenas participam figuras associadas à banda desenhada, é raro veres lá gente de outros campos artísticos. O universo da criação artística, como todas as áreas da vida, especializou-se nos últimos vinte anos, tornou-se mais depurado, mais insulado. Lembro-me da minha passagem pelo curso de ilustração do Ar.Co, escola interdisciplinar, e como também não existiam ali permutas entre os alunos dos vários cursos. Não que isso seja só por si mau, mas é preciso não deixar de ser curioso e tentar sempre acompanhar o que é feito em outras áreas que não a nossa.


DC: Como é que te surgiu a paixão pela escrita e pela banda desenhada? Uma coisa levou à outra?
DS:
Eu aprendi a ler antes de ir para a escola com os livros de banda desenhada da Disney e lembro-me de começar a fazer BD desde essa altura, desenhando em cadernos e depois arrancando as folhas e agrafando-as com uma capa. Fiz muitos livros artesanais de BD e ainda tenho bastantes guardados. Nessa altura inventava histórias no modelo Disney com personagens antropomórficos: coelhos, pintos, monstros esquisitos. Quando entrei para o primeiro ano de escolaridade passei um mau bocado porque a professora não gostou nada do facto de eu já saber ler. Foi a partir daí que percebi o poder da autoridade em cercear a criatividade; talvez não de um modo consciente, como o entendo agora, mas percebi logo que aquilo não estava certo. Fui um aluno muito mal-comportado, na primária e ainda mais no liceu, mas como sempre tive boas notas, principalmente a português e a história, os professores não podiam reclamar muito. Olhando para trás, e somando essas experiências ao conhecimento da sociedade que tenho presentemente, penso que as pessoas, principalmente aquelas que ocupam papéis de poder, têm muito medo de quem é imaginativo, de quem olha para as coisas com outros olhos.

Sempre me vi como um contador de histórias, nunca me imaginei a fazer outra coisa. Houve um momento em que pensei fazer um curso de realização de cinema, mas compreendi que se tratava de uma má ideia porque não tenho espírito de equipa e se me tivesse metido num curso desses iria ser um desastre. Formei-me em design gráfico porque a área tem afinidades com o desenho, mas não é um trabalho ao qual eu devote muito amor: acaba por depender muito da tecnologia e eu sou mais analógico que digital. Também passei pelo curso de ilustração do Ar.Co, como já te disse, mas embora guarde belas recordações dessas aulas percebi que essa área também não era aquilo que me agradava mais. O meu ofício é mesmo escrever e foi o amor pela narrativa que me levou à BD, desde os cinco anos de idade, porque ela é uma linguagem narrativa.

Tive sorte de crescer num núcleo familiar que valorizava a cultura e a criatividade. Quando era miúdo recebia sempre dois ou três livros de BD por dia, as minhas prendas sempre foram maioritariamente livros, mesmo nos anos e no Natal. Esse contacto permanente com histórias foi muito importante porque, mais tarde, quando comecei a formular aquilo que viria a ser a minha identidade autoral eu já tinha lido centenas de coisas.


DC: Por ordem mais ou menos cronológica fizeste várias BDs (Cidade Túmulo, Burroughs), um ensaio sobre BD, passaste para os contos (Os Ossos do Arco-Íris) e agora ao romance (A Conspiração dos Antepassados). Nota-se uma certa progressão nos tipos de escrita que abordas: BD, ensaio, contos, romance. As antigas experiências foram somente isso, experiências numa constante evolução da escrita, ou estás a pensar voltar “atrás”?
DS:
Não foram experiências, como é óbvio, se bem que cada trabalho possua sempre alguma coisa de experimental. Penso que os meus livros envelheceram bem e isso advém de se concentrarem em temáticas que dificilmente se deixam datar. Essa foi sempre uma preocupação minha: fazer coisas que me agradassem tanto no momento da realização como durante as releituras. É claro que existe sempre uma evolução da voz autoral, um refinamento. Se ela não existisse, estaria, certamente, a fazer algo errado. Se entendes que o “voltar atrás” seja um regresso à banda desenhada, tenho de dizer que não vai haver regresso nenhum porque nunca a abandonei. Simplesmente, neste momento, não tenho vontade de desenhar, mas continuo a escrever banda desenhada.

Na minha opinião, fazer um álbum de banda desenhada é mais trabalhoso que escrever um romance porque além de escrever a história ainda é preciso desenhá-la. Quem é autor de banda desenhada sabe muito bem o trabalho que dá fazer um álbum, compor as pranchas. Para o efeito é preciso uma grande habilidade em contar histórias, uma capacidade de síntese que se aproxima mais da poesia que do cinema. Também é preciso ter uma cultura gráfica apurada. Quem quiser ser um bom autor de banda desenhada precisa de trabalhar muito.

A arte do romance também é exigente: em primeiro lugar, o autor precisa aprender a dilatar o espaço mental para englobar galerias de personagens e situações diversas. Há dois anos foi editado um romance de um autor norte-americano que escreve em francês e vive em Barcelona: Les Bienveillantes; publicado o ano passado pela Dom Quixote com o título As Benevolentes. Trata-se de um livro que deixou toda a gente surpreendida porque tem quase mil páginas em letra miudinha. É que nesta altura já ninguém escreve assim a não ser um ou outro autor de culto como o Thomas Pynchon: os romances dos novos autores raramente ultrapassam as sessenta mil palavras. As reacções que este livro de Jonathan Littell provocou, da surpresa à ofensa, são reveladoras do modo como olhamos para os livros e para a cultura. Não estou a querer passar a mensagem que só os livros volumosos é que são bons, apenas sublinhar que é uma pena esperar-se pouco dos escritores – e dos restantes artistas – e acusar aqueles que vão mais longe que a média de buscarem protagonismo.


DC: Numa altura em que os romances históricos estão muito na moda, o que distingue “A Conspiração dos Antepassados” dos outros títulos semelhantes que preenchem as livrarias nacionais?
DS:
O facto de não ser um romance histórico. O tom dominante da narrativa é o horror e o fantástico. Repara que os leitores querem sempre catalogar novidades com o que já conhecem e, demasiadas vezes, aquilo que conhecem é o que vêem anunciado na comunicação social que apenas lhes fala do que é, imediatamente, mediático ou do que é veiculado por figuras públicas, logo reconhecíveis. A Conspiração dos Antepassados é tanto um romance histórico como o são os livros The Anubis Gates de Tim Powers, O Nome da Rosa de Umberto Eco, Argento-Vivo de Neal Stephenson ou A Voz do Fogo de Alan Moore. Nunca compreendi a designação de romance histórico, principalmente quando é agitada como pejorativa. Nunca li, em lado nenhum, uma justificação para o preconceito. Talvez ele tenha nascido desde que O Código Da Vinci de Dan Brown se tornou um enorme sucesso comercial, mas, se assim é, trata-se de um preconceito que ainda cheira a leite. Como, então, falar de livros como Gente Independente de Halldór Laxness, Tudo o Vento Levou de Margaret Mitchell, A Luz em Agosto de William Faulkner, Memorial do Convento de José Saramago, Eurico, o Presbítero de Alexandre Herculano ou Criação de Gore Vidal, que também inscrevem a diegese num enredo histórico. Enfim, qualquer livro se integra num determinado período da história das civilizações, seja passado, presente ou futuro, mas é o tom dominante das narrativas que os inclina para um género particular em prejuízo de outros. Nessa óptica, entendo que as histórias possam ser dramas, aventuras, contos de horror ou de ficção científica, até viagens de reflexão autobiográfica, mas não compreendo a designação de romance histórico porque o período histórico de um livro não é nenhum género ou modo: é um panorama, um cenário. Ao fim e ao cabo aquilo que novos autores como Dan Brown, Bernard Knight, C. J. Sansom e muitos outros estão a fazer é o mesmo que a Ellis Peters e o Umberto Eco já fizeram: usar a estrutura do romance policial, ou gótico, e criar um ambiente mais cinemático que gira em torno de ameaças tecnológicas ou envolva sociedades secretas. Aliás, o C. J. Sansom tem muitos pontos em comum com o Eco e a Peters. Todas essas histórias são, em essência, romances policiais: alguém morreu, alguém roubou alguma coisa e alguém vai descobrir o que se passou. São whodunits, histórias policiais.

Penso que o preconceito em torno das designações e dos géneros, que acusa até falta de imaginação e cultura literária da parte que de quem o promove, acaba por impedir que os leitores se divirtam com os livros. É claro que será mais enriquecedor ler Umberto Eco ou William Boyd que Dan Brown, mas os livros escritos por figuras públicas alheias ao universo da literatura, essas coisas indescritíveis (as biografias de jogadores de futebol, as versões em livro de programas televisivos e as crónicas de quem caiu em graça em vez de ser engraçado) fazem muito mais mal aos leitores e ao mercado que todos os romances que Dan Brown já publicou.

As críticas, e os comentários dos leitores, que me chegaram às mãos sobre A Conspiração dos Antepassados têm sido excelentes e o livro está a vender muito bem, conseguindo alcançar a segunda edição em pouco mais de um mês. Avaliando que conheceu pouquíssima divulgação nos jornais e na televisão é uma vitória ainda mais saborosa. Consiste numa história sobre as vidas de Fernando Pessoa, Aleister Crowley e o modo como elas se cruzam em Lisboa numa busca pelo destino de Dom Sebastião. É um romance cujo mito fundador é partilhado por toda a cultura ocidental, o arquétipo do Rei Encoberto, ou Adormecido. As imagens e preocupações continuam a ser as mesmas que tenho vindo a desenvolver em livros anteriores: o horror, o oculto, a história. Nesse sentido A Conspiração dos Antepassados é o seguimento de uma filosofia autoral, do mesmo modo que o foram A Última Grande Sala de Cinema ou Os Ossos do Arco-Íris. Sempre escrevi sobre os meus temas mais queridos em proporções contrabalançadas de verdade histórica e ficção fantástica, às vezes a primeira é maior que a segunda, como no conto O Elefante e o Cavalo, e às vezes é menor.

Para a realização d’A Conspiração dos Antepassados baseei-me nas melhores biografias disponíveis sobre as personagens principais e posso assegurar que tudo o que diz respeito a factos é verdadeiro, apenas se encontram encaixados num contexto fictício. As personalidades de Pessoa e Crowley que podem ler no romance estão, a meu ver, tratadas de uma maneira que se aproxima, com certeza, das personalidades que ambos devem ter tido; existem muitos diálogos entre eles, e com outros protagonistas, que são reais e que eu desloquei para as exposições descritas no livro. As descrições da Lisboa dos anos vinte e trinta, assim como as outras cidades por onde toda a acção é espraiada, seguem a esteira de fotografias e mapas dessa altura. É o resultado de um trabalho de pesquisa e recolha de informação que me durou quatro anos, desde que havia planeado fazer duas biografias distintas sobre Fernando Pessoa e Aleister Crowley. Consciente do encontro entre eles que ocorreu em Lisboa em 1930 sempre achei que a situação poderia ser a base para uma grande história. O trabalho do artista renascentista português Francisco D’Ollanda deu-me as pistas fundamentais para unir os destinos do poeta e do mago de um modo que não só me permitia a inclusão de uma tradição mítica portuguesa como ainda desenvolver uma história que comunicasse com mitologias de outras culturas.

Por tudo isso, e voltando à tua pergunta, não acho que existam outros livros de autores portugueses semelhantes a este nas livrarias. É uma aventura de horror sobre Fernando Pessoa, sobre Aleister Crowley. É uma história de horror sobre Lisboa. E isso é algo que não se vê todos os dias.


DC: É possível que "A Conspiração dos Antepassados" vá ter uma sequela?
DS:
Não. Todos os meus trabalhos partilham temas, mas não faço sequelas para os meus trabalhos.


DC: É claramente visível para quem lê a tua obra que és conhecedor das ciências exactas, e de tudo ligado ao sobrenatural e simbolismo da cabala, maçonaria, etc. De onde veio tanto conhecimento que parece estar ao nível de especialistas e estudiosos na matéria?
DS:
Da leitura sem preconceitos desses temas. O meu interesse pelo oculto e pela ciência remota à infância e ao gosto pelo género do horror e do fantástico. Mais tarde vim a perceber que não só quase todos os ilustres cientistas da história nutriram grande interesse pelas disciplinas herméticas, como os ocultistas mais rigorosos se aproximaram muito perto de teorias científicas actuais, apesar da linguagem com que escreveram os trabalhos que nos deixaram ser aquela que tinham à disposição na altura: a numerológica, a astrológica, a panegírica. Sempre existiram mentes brilhantes que olharam o mundo e intuíram conceitos que se aproximaram da física. E o inverso, cientistas que procuraram a sabedoria oculta, também é verdadeiro. O Arthur C. Clarke escreveu que toda a tecnologia de ponta atravessa um momento em que é observada como Magia (a famosa terceira «Lei de Clarke»).

O Aleister Crowley definiu a Magia como sendo a «ciência de mudar o mundo consoante a vontade». É um axioma ateísta, no fundo, porque não se suporta na mecânica de agentes sobrenaturais, como espíritos ou demónios, mas em relações de causa e efeito provocadas por actos físicos, realizados pelo indivíduo. Tratou-se de uma ideia revolucionária no que diz respeito a pensar sobre a Magia e continua a ser aceite pelos ocultistas modernos como a definição mais apurada. Por exemplo, a evolução das espécies através do processo da selecção natural, que é um poderoso algoritmo que tanto serve para estudar a biodiversidade como o nascimento das estrelas no universo, encontra um reflexo esotérico nos textos hinduístas que compõem o Rig Veda, traduzidos para inglês por Friedrich Max Muller, amigo íntimo de Darwin: são textos que narram a evolução humana desde a criação da matéria por Brahma, o lado luminoso da mente de Vishnu (o lado negro é Shiva) até o surgimento de uma espécie de criatura marinha que passa por formas reptilianas e simiescas antes de se cifrar na humana. Ou seja: existiu alguém que no passado intuiu o mesmo que Darwin comprovou no século XIX, mas, por culpa da ignorância da biologia, que Darwin instrumentalizava com mestria, usou a linguagem do mito para transmitir a ideia porque era aquilo que estava à mão. Esta ideia da criação da matéria pela mente, ou a Emanação, que é um argumento basilar em todas as tradições herméticas, ressoa nas palavras «Eu penso, logo existo» do filósofo René Descartes: em primeiro lugar nasce o pensamento e depois a existência, a matéria; é um conceito que não é de todo estranho no raciocínio de Descartes que, sem ser ocultista, conhecia diversos rosicrúcios e deve, de certeza, ter sido inspirado por eles.

Eu sou ateu, não acredito no espírito e considero que a religião é um veneno, mas isso não me rouba entusiasmo pelo estudo das disciplinas herméticas porque, em suma, acredito que os ocultistas e os cientistas procuraram o mesmo: a verdade sobre o mundo; sob orientações e linguagens diferentes, mas com conclusões parecidas.

É útil reter que quando falo em ocultistas refiro-me a nomes como Jacob Boehme, Pico della Mirandola ou Robert Fludd e não aos vulgares astrólogos de jornal, cartomantes ou “Professores Karambas”. Falar dos dois conjuntos no mesmo contexto seria como acreditar que o Diabo, na tentativa de tomar posse do mundo, escolheu aliar-se aos músicos de Black Metal em vez dos políticos e dos empresários das multinacionais.


DC: O que pensas do panorama bedéfilo nacional?
DS:
Acho que neste momento existe algo que não existia há uns anos: uma comunidade forte de artistas underground e alternativos que publicam trabalhos interessantes de um modo regular e profissional. Os livros e fanzines publicados pela MMMNNNRRRG, Imprensa Canalha e Opuntia Books são belos exemplos disso. A Kingpin of Comics é uma referência de peso na edição de comics portugueses de qualidade. A El Pep possui títulos com valores de produção muito bons. Existem diferentes espaços onde os artistas podem intervir e mostrar os trabalhos de um modo que escapa às convenções habituais, o que oxigena as estéticas. Quanto ao mainstream (se é que faz sentido falar de mainstream e underground na BD portuguesa… talvez faça) penso que a edição de autores portugueses morreu.

O surgimento de um ou dois títulos anuais durante o FIBDA não é vida. Existem vários problemas que concorrem para que isso aconteça, mas um dos principais é a falta de novos artistas com propostas originais. Excepto o álbum de Ricardo Cabral, sobre o alpinista João Garcia, não apareceu nada vindo de novos autores. Infelizmente, nesta altura em que quase nenhum álbum português é publicado é que temos um periódico regular que se devota à divulgação e crítica de banda desenhada: o BD Jornal. É um esforço que nunca é demais louvar: possui artigos de qualidade e oferece oportunidade aos aspirantes a autores de mostrarem o que valem. Vale a pena falar no álbum do Rui Lacas, publicado em francês e só depois em português, mas isso também não é uma situação inédita. Penso que aquilo que define melhor o actual panorama bedéfilo nacional é uma exaustão completa da publicação em álbum, pelas vias tradicionais, e o emergir de um underground coeso, cheio de gente interessante, que vê a BD com olhos interdisciplinares e sem complexos.

É com alguma pena que imagino que a BD se pode estar a tornar numa arte moribunda, porque os candidatos a novos autores não possuem uma cultura de banda desenhada, não estão familiarizados com ela: a BD, e pela medida grande a leitura, não faz parte dos seus horizontes. Não penso que se trata de um pensamento miserabilista, porque as coisas são mesmo assim: as artes, como as tradições, deixam de fazer sentido para determinadas gerações. Ficamos tristes quando uma coisa que gostamos desaparece, mas temos de saber viver com isso. Às vezes a coisa nem desaparece: é absorvida por outra ou transforma-se. Isto cruza-se com aquilo que discorri sobre o romance de Jonathan Littell, uns momentos atrás: a arte do romance, como era entendida há uns anos, também é uma arte moribunda. Se não o fosse como explicar a surpresa da imprensa especializada (ainda por cima!) diante da publicação de um volume imenso como As Benevolentes. Vamos ser sinceros: hoje em dia quais são os leitores que têm tempo, paciência e bagagem cultural para se aventurarem numa leitura desse género a não ser os mais resistentes e meia-dúzia de teimosos habituados a ler os clássicos? É uma pena, mas existem demasiadas coisas a roubar o tempo que dantes era dedicado à leitura. Nós lemos pouquíssimo e cada vez mais estamos habituados à brevidade, ao resumo. Os jornais não trazem notícias: trazem sinopses. Estamos a ficar fora de forma para ler. Seria de esperar que a ficção curta, como as barrinhas de cereais, fosse do agrado do público, mas a verdade é que os livros de contos se vendem muito mal. É uma loucura: qual é, afinal de contas, a medida certa para um livro?

Contudo, acho que o livro não vai desaparecer. Penso que a imprensa impressa, essa sim, tem os dias contados: os jornais são cadáveres que persistem teimosamente nos quiosques. Daqui a três ou quatro anos, à semelhança da televisão, todos os jornais serão digitais e a Internet vai perder a aura de serviço público que ainda impossibilita o negócio das assinaturas online de revistas e jornais. O livro continuará a ser impresso e poderá ganhar um novo estatuto de veículo de informação especializada, ou alternativa, para servir de contraponto à imprensa digital. Como fazem hoje as revistas underground. Será um período interessante, sem dúvida.


DC: Sei que tens vários argumentos para BDs na gaveta e sem ninguém para os desenhar. Isto confirma a ideia que são poucos a aventurarem-se na Banda Desenhada e ainda menos a produzirem?
DS:
Existe um problema com os desenhadores portugueses de BD que é o seguinte: na maioria das vezes estão mais interessados em desenhar o que lhes prende a atenção e o gosto, em determinado momento, que em contar uma história e comunicar com o leitor. Ou seja, pensam algo dentro destes moldes: «Hummm, agora apetece-me desenhar isto» ou «Não seria porreiro se eu desenhasse isto com aquilo?». Não há nada de errado, em síntese, com esta abordagem. Somente não fiquem à espera que possam surgir grandes histórias trabalhando dessa forma... Também não existem muitos desenhadores que saibam ou sejam capazes de trabalhar em equipa com um argumentista. A maioria pensa mesmo que é capaz de imaginar uma boa história sozinha... Alguns também não gostam muito de ler, o que torna impossível a apreciação e análise de um argumento. A situação normal na BD portuguesa é que quem a faz chegou a ela pelo desenho e não pelo impulso de contar uma história. Sendo assim é natural que a tónica seja colocada, tanto pelos criadores como pelos leitores, no papel do artista em prejuízo do argumentista. É uma visão da BD que é aceite e divulgada até por quem tem, ou tinha, responsabilidade de saber mais que isso. Falo da minha própria experiência de contactos com diversos artistas portugueses, com os quais tentei formar uma equipa, por isso não me venham dizer que as coisas não se passam assim: as coisas passam-se mesmo assim. Felizmente, começam a aparecer desenhadores que têm outra ética de trabalho e os comics publicados pela Kingpin of Comics são um excelente exemplo do que é possível fazer quando os argumentistas e os desenhadores trabalham em conjunto.


DC: O que é que costumas ler em banda desenhada? De literatura dita normal penso que seja escusado perguntar pois é visível para quem visita o teu blog cadernosdedaath.blogspot.com
DS:
Eu leio pouquíssima BD porque as histórias que procuro não são contadas nessa linguagem. Também leio muitos títulos que não são ficção e por aí está visto que a escolha não pode cair mesmo na BD. Continuo a acompanhar o que se produz e a ler os álbuns dos meus autores preferidos, mas não leio tanta banda desenhada como lia há uns anos atrás. Mas já lia pouquíssima no período em que desenhava, por isso não é uma situação nova nem se trata de uma postura elitista. Simplesmente as histórias e as matérias que procuro não se encontram no campo da banda desenhada.


DC: Que títulos e autores são esses que ainda te prendem à Banda Desenhada?
DS:
Meia-dúzia de autores que eu gosto, mais argumentistas que desenhadores. Ted McKeever, Grant Morrison, Alan Moore, Jodorowsky. E poucos mais. Como te disse, apesar de adorar BD, não leio quase nada de BD.


DC: A Círculo de Abuso irá regressar algum dia com um álbum de BD novo da tua autoria?
DS:
Nunca se sabe. Se voltar a minha vontade de desenhar, porque não?


DC: Para quem se quer dedicar à escrita, tens algum conselho?
DS:
Leiam muito. Ouçam música. Saiam de casa para olhar as pessoas e vão ao cinema. Sobretudo, leiam mesmo muita coisa para aprender como se esgrima com as palavras e para evitar ter ideias que já foram publicadas. Eu acho que os cursos de escrita são todos uma trampa, mas até pode ser que funcionem para algumas pessoas que, de outro modo, teriam alguma dificuldade em se soltar sozinhas. Às vezes é preciso ajuda exterior para soltar a mão, como nas aulas de desenho e de pintura. O problema é que um escritor não precisa de aprender a soltar a mão: precisa de aprender a soltar a cabeça, e aí não há meio-termo. Cada um tem de saber fazê-lo sozinho. A verdade é esta: se não dedicares tempo à leitura nunca irás aprender a escrever. É como querer emagrecer sem fazer exercício.

Para ser escritor é necessário gostar de livros, gostar de ver livros nas estantes e de ouvir palavras. É preciso gostar bastante de histórias; e ser infantil, acredita, ajuda muito. Eu sou infantil que me farto e não sou a melhor pessoa do mundo para cuidar de assuntos práticos. Estou sempre a pensar no que estou a ler ou nas histórias que vou contar a seguir. O meu conselho é mesmo esse: leiam muito. Leiam tudo o que conseguirem apanhar. E depois comecem a escrever. Se não for assim não vale a pena. Mais vale desistir agora e poupar dinheiro.


DC: Por último, alguma mensagem para os nossos leitores?
DS:
Leiam boa banda desenhada. Divirtam-se.

5 comments:

Nuno Amado said...

O gajo passou-te a perna!!! LOOOL
Era bonito, já que estavas a entrevistar o rapaz, ele disponibilizar essa informação!

João Rosa said...

Gostei da entrevista Diogo. Fico à espera de mais, e tenta arranjar umas com autores internacionais ;)

DC said...

Pois foi bongop. Eu bem me queria parecer que a resposta à pergunta se a Círculo de Abuso ia voltar com uma BD dele tinha qualquer coisa por detrás.

Ui autores internacionais, era bom era. O Hugo volta e meia faz uma entrevista a esses autores.
Um triste exemplo foi o Mike Wieringo que o Hugo enviou entrevista e ele faleceu antes de poder responder :( mas temos Erik Larsen (Savage Dragon) para breve ;)

Nuno Amado said...

Eu já tentei várias vezes... mas os gajos nunca me respondem! Nem sei se o mail lhes chega às mãos!
Entrevista internacional é dura de obter ...

Nuno Amado said...

Já tentei :
Warren Ellis
Jae Lee
John Cassaday

Bom... pelo menos tentei !
LOOOOOL